Certa vez,
quando muito criança, conheci um tal de Bedelho. Ele tinha minha idade, falava
pelos cotovelos e tinha ideias geniais, por isso nos demos bem desde o dia em
que nos encontramos.
Ele era
daquelas pessoas que sabiam de tudo um pouco, daquelas que sempre dão um
jeitinho em tudo. Apesar disso, Bedelho era absolutamente manipulável, posso
dizer que sua aparência era até bem próxima a de uma marionete.
Por nossa
tamanha afinidade, Bedelho se entregou a mim de tal forma que, sendo meu,
comecei a metê-lo onde me dava vontade. Primeiro meti o Bedelho nas rodinhas de
cantiga no jardim de infância, se o pessoal desafinasse, eu logo metia o
Bedelho. Depois, já mais observadora, quando a professora fazia chamada oral
questionando tabuada, na complicação do 7x7, se alguém errasse o resultado... Lá estava eu convocando a honorável
participação do Bedelho.
Eu e o
Bedelho éramos inseparáveis, mesmo com as pessoas olhando para ele com ares de
desaprovação, fazíamos tudo juntos...
Eis que um
dia, D. Margarida, a professora de Matemática, fez algo terrível. Algo que
mudaria o meu destino e o do Bedelho pra sempre.
Era 23 de
junho, perto das férias de inverno, eu estava na quarta série. Aquela seria a última
chamada oral do semestre, quem não conseguisse nota ficaria na escola durante
as férias, e pensar nisso era mais aterrorizante que os filmes do Hitchcock.
Sentada na
primeira carteira da terceira fileira, com o Bedelho ao lado, sentia as
respirações ofegantes dos colegas preocupados com a tabuada do 7, e tive a
ligeira impressão que a presença do Bedelho não os deixava menos preocupados,
apesar de ser este o motivo de levá-lo.
Então, D.
Margarida começou a chamada. Eu e o Bedelho estávamos muito ansiosos, por isso,
vez ou outra, quando alguém errava, eu tratava de meter o Bedelho. E, nossa!
Como o Bedelho ficava feliz.
Eu já havia
metido o Bedelho umas cinco ou seis vezes, quando escutei o estrondo de uma
explosão que deve ter alcançado uns nove pontos na escala Richter. Virava-me
lentamente ao ritmo do "Cheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeega!!!!" da D.
Margarida, quando senti aquelas mãos suadas e trêmulas agarrando meu braço e me
levando pra frente da sala:
- Natália!
Já chega! Ninguém mais agüenta você metendo o Bedelho desta forma! Pare de
meter o Bedelho, e pare já! É falta de educação! Atrapalha! Deixa a mim e a
todos na escola nervosos. Está insuportável!!!! Nunca mais faça isso! Está
proibida! Não meta mais o Bedelho onde não é chamada!
Amigos, eu
tinha dez anos, a repressão e a ditadura já tinham acabado, mas em pleno século
XX, essa pessoa que vos fala, sofria a pior das repressões que uma criança de
dez anos poderia sofrer: proibida de meter o Bedelho.
Vi o
Bedelho diminuir ao tamanho de uma ervilha, de tanta vergonha. A D. Margarida
havia humilhado o Bedelho e dilacerado o coração de meu amigo, reduzindo-o a
nada e colocando-o à beira da inutilidade existencial. E eu não entendia o
motivo de tanto descontentamento em relação a ele, pois ao questioná-la, ela
mesma admitiu que todas as vezes que meti o Bedelho estávamos dizendo as coisas
certas (mas é claro, nunca meti o Bedelho em lugares que eu não conhecia).
Eu e o
Bedelho saímos arrasados, ele chorava sem parar, inconsolável.
Chegando a casa, corri para pedir socorro à
única pessoa que saberia me ajudar, minha mãe.
Contei a
ela o ocorrido, e também que o Bedelho planejava ir embora, disse que eu não
metia o Bedelho por mal, era só quando eu e ele percebíamos que alguém
precisava de ajuda, era só pra ajudar.
Muito
sábia, minha mãe disse que eu tinha que preservar o Bedelho, pois nem todo
mundo entenderia o quanto ele era especial e, portanto, eu deveria usá- lo
apenas com pessoas que entendessem a real função dele. Disse que o Bedelho era
muito inteligente, mas que eu não deveria mais metê-lo com tanta frequência
para que ele não se machucasse.
Deus! Eu
estava matando o Bedelho e não sabia.
Depois de
ouvir os conselhos da minha mãe, fui para o quarto e conversei com o Bedelho.
Falei a ele que não ficasse chateado, pois eu passaria a levá-lo para a escola
apenas quando tivesse aula de artes, pois na aula da D. Dorotéia ela adorava
quem metesse o Bedelho. Expliquei que eu não queria mais machucá-lo e,
portanto, eu só o levaria para onde fosse extremamente necessário.
A D.
Margarida mudou minha relação com o Bedelho e a minha mãe me fez enxergar o
quão especial ele era (e é).
Ao decorrer
dos anos eu e o Bedelho ficamos mais juntos, inseparáveis, mas mais maduros
também, mais convenientes.
Eu ainda o
meti algumas vezes de forma impensada, na faculdade, no namoro, no trabalho...
Mas sempre no intuito de fazer o bem.
Hoje, tenho
o Bedelho guardado dentro de mim e ele se alimenta das intempéries da vida.
Quando ele engorda muito e transborda, trato de metê-lo em algum lugar, mas
agora só o meto aonde tenho certeza que, em algum momento, ele será entendido e
bem recebido.
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